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Você já ouviu falar sobre doulas da morte?

Você já ouviu falar sobre doulas da morte?

PROALU - Programa de Acolhimento ao Luto

Foto: Thirdman (Pexels)

Autora: Isabela Cameron @psi.isacameron
Psicóloga e psicanalista, voluntária no Proalu.

Primeiro, começo perguntando, você sabe o que é uma doula e qual a sua função? Uma doula é uma profissional que oferece suporte físico, emocional e informativo à mulher antes, durante e após o parto.

Habitualmente ouvimos falar sobre doulas como profissionais que oferecem apoio, conforto e suporte emocional durante o período de gravidez, parto e pós-parto, com objetivo de oferecer bem estar a essa fase da vida, mas em um artigo escrito por Constant Méheut, repórter do The New York Times, que atualmente está cobrindo a guerra na Ucrânia, expandimos o conceito de doulas serem somente aquelas que cuidam do início da vida, para doulas que cuidam do processo de fim da vida, a morte. Em vista da contínua guerra na Ucrânia, ucranianos enlutados recorrem a “doulas da morte” em busca de apoio.

Pensando nesse tipo de cuidado emocional, é importante diferenciar o trabalho de uma psicoterapia de luto para o aconselhamento oferecido pelas doulas da morte, onde seu trabalho é focado em um processo breve, de apoio, compaixão e com foco na escuta. O tratamento em psicoterapia de um processo de aconselhamento pode ser diferenciado pela duração e profundidade. Numa psicoterapia temos como objetivo entender as raízes do sofrimento emocional do sujeito, através da fala do indivíduo e do vínculo terapêutico estabelecido, trabalhamos em conjunto para a melhora de aspectos emocionais e criamos maneiras para lidar e enfrentar seu sofrimento, ressignificando sentimentos de vazio, perdas e situações traumáticas. Nesse processo são abordadas experiências passadas, padrões de comportamento e emoções, é um processo longo e exploratório. Já em um aconselhamento, o objetivo é apoiar indivíduos a lidar com problemas específicos e atuais, oferecendo estratégias para enfrentar e resolver problemas, seu foco está em fornecer apoio e melhorar o bem-estar. Em sua grande maioria a duração é de algumas semanas, sendo um processo mais direto e prático.

No artigo, o trabalho oferecido pelas doulas da morte, é caracterizado como um tipo de aconselhamento, fazendo um paralelo, podemos pensar que seria algo semelhante a um processo de primeiros cuidados psicológicos em emergências e desastres, com ações orientativas a sentimentos agudos de luto. Os primeiros cuidados psicológicos são caracterizados como ações que oferecem apoio e cuidado práticos não invasivos, ajudam as pessoas a suprirem necessidades básicas, confortá-las e ajudá-las a ficarem calmas em momentos de grande estresse e urgência, escutar sem pressionar a falar, auxiliar na busca de informações, serviços e suportes sociais e proteger para que mais danos possam afetá-la naquele momento. Esse tipo de atendimento pode ser praticado por qualquer pessoa, desde que treinada por psicólogo capacitado.

Numa situação de guerra, a devastação é sem precedentes. Estamos falando de mortes, desaparecimentos, uma ruptura de perspectiva de futuro, sonhos e planos, falta alimento, moradia, saúde, amparo e cuidado para a população atingida.

Tragédias podem provocar sensações, sentimentos e emoções como impotência, horror, dor, medo, pânico, angústia, ansiedade, contato com a própria morte e com a de outros e questionamento de valores e crenças (Alves e Oliveira, 2017).

Ao levar em conta aspectos sociais e culturais que organizam esses territórios, fala-se sobre esses países perpetuarem um legado da União Soviética, a cultura de não falar sobre morte e sofrimento emocional, acompanhado das dificuldades em pedir ajuda, pois essas atitudes seriam vistas como sinal de fraqueza. No livro “História da Morte no Ocidente,” Philippe Ariès explora como a sociedade ocidental tem transformado a percepção da morte ao longo dos séculos. O autor traz que, na modernidade, a morte se tornou algo a ser negado e escondido, em comparação com épocas anteriores onde era mais abertamente enfrentada e integrada à vida cotidiana. Ele descreve a morte como uma interrupção intolerável da vida, um evento que a sociedade contemporânea prefere ocultar em hospitais e instituições, afastando-a do ambiente familiar e cotidiano. Esse distanciamento reflete uma tentativa de negar a realidade inevitável da morte, transformando o luto em um processo solitário e menos visível, marcado pela falta de rituais públicos, tornando o sofrimento invisível e não reconhecido.

Na matéria em questão, é abordado esse aspecto no seguinte trecho: “As pessoas não sabem o que dizer a uma pessoa que perdeu um ente querido. Eles não sabem muito sobre morte ou tristeza. Este tópico é um tabu”, disse Nekipelova em uma entrevista recente. “O papel de uma doula da morte é fornecer um espaço para essa pessoa falar sobre isso.”

Pensando na realidade de guerra vivida pelos ucranianos, é válido trazer para discussão a importância de se falar sobre morte e luto em um cenário como esse, não só numa situação como essa, mas falar sobre morte é falar sobre um aspecto natural da nossa condição humana. As pessoas que vivenciam um processo de luto, precisam encontrar espaços para falar sobre como essas perdas afetam sua história e sua vida, mudando sua rotina e sua perspectiva de mundo. Através da fala podemos encontrar acolhimento, construir uma rede de apoio e dar um significado para esse sofrimento, que é individual e único para cada pessoa. Assim é possível construir um contorno para essa dor e poder criar novas perspectivas, mesmo sabendo que o falecido não retornará e de que a saudade e a falta estarão presentes para sempre.

Mas, será que falar é suficiente para tratar esse sofrimento? Aqui é importante pensar não em um processo de cura por completo, porque as perdas, a falta e a dor sempre existirão, mas como é possível seguir apesar da dor e da falta? Em um processo de tratar e dar um novo sentido para essa perda, ainda mais quando abordamos mortes tão abruptas e violentas, como num cenário de guerra ou até mesmos em desastres naturais, como o que aconteceu no Brasil, nas enchentes no Rio Grande do Sul, corpos não são encontrados, há centenas de desaparecidos, não existe a oportunidade de velório e enterro dignos para as famílias dos falecidos, não há um luto antecipatório e nem um momento para poder se despedir, não estamos falando aqui de um processo de adoecimento prévio, por isso, numa situação como essa é importante pensarmos em rituais. Os rituais dão a oportunidade do sujeito criar significados para lidar com a sua perda, onde assim ele possa realizar em certa medida o ato de se despedir, dizer coisas em que não houve a oportunidade, reunir objetos afetivos e recordações. Os rituais não seguem regras pré-estabelecidas, mas é uma forma de criar demonstrações e significados com atos de afeto que representem a sua perda e com isso poder assimilar e dar novos sentidos e perspectivas para esse fato.

O luto é o dolorido processo de ressignificar essa perda e, segundo Parkes (1998), compõe a pior experiência do ser humano durante toda sua existência. Sempre que houver perda ou rompimentos significativos, haverá luto.

Num panorama como esse abordado na notícia, em cenários de guerra e fazendo um paralelo com desastres naturais vivenciados aqui no Brasil, estamos falando de mortes violentas e abruptas, aumentando a sensação de vulnerabilidade e perdendo a confiança no futuro, por esse motivo é importante falarmos sobre o luto coletivo vivido por uma sociedade, que favorece o compartilhamento e a autorização da dor e pode ser um fator de proteção para o luto complicado e também sobre o lutos simbólicos, que são perdas além da morte em si, perdas não físicas, como sonhos, identidade ou fases da vida, sendo profundamente significativo e muito doloroso. Embora seja menos reconhecido que o luto por morte física, exige adaptação e reconstrução da vida diante da perda que não é concreta e palpável.

Finalizo esse texto deixando um questionamento… o papel das doulas da morte, explicitado na notícia é o de ouvir, mas para além do estímulo ao falar, como podemos ajudar o enlutado a dar um contorno para o seu sofrimento?

Para apoiar indivíduos num processo de luto é importante entendermos as diferentes abordagens e tipos de tratamentos, reconhecendo seus limites. Num cenário de desastre e emergência, se faz necessária ações de aconselhamento e acolhimento iniciais para tratar e dar direções ao que se faz mais urgente naquele momento, mas entender os limites de um processo de aconselhamento oferecido pelas doulas da morte é importante para dar seguimento ao tratamento daquele sujeito. Avaliar o nível de sofrimento, a proporção das suas perdas, seu acesso a rede de apoio, a quem esse sujeito pode recorrer num momento de extremo sofrimento e necessidade, perceber seu nível de capacidade emocional para o enfrentamento da situação, são aspectos importantes para perceber quando um processo de acolhimento dá conta, ou quando se faz necessário um encaminhamento para um tratamento em psicoterapia.

Precisamos estimular e romper os tabus de falar sobre morte e luto, e assim dar espaço para que as pessoas possam expor suas histórias de sofrimento e como elas afetam a sua existência. O ato de contar e recontar a história de perda e luto são formas que ajudam a encontrar novas possibilidades de existir mesmo com essa ausência, e assim juntar seus “pedaços” e lidar com suas perdas, que são inevitáveis ao longo da vida. Falar sobre a morte, é falar sobre a vida!

Referência bibliográfica:
ALVES, E. G. R. Da psicologia dos desastres à psicologia da gestão integral de riscos e desastres. In: FUKUMITSU, K. O. (org.). Vida, morte e luto: atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018. p. 166-181.
GÜNTHER, W. R.; CICCOTTI, L.; RODRIGUES, A. C. (org.). Desastres, múltiplas abordagens e desafios. Elsevier. 2017.
Parkes, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. Trad. Maria Helena F. Bromberg. São Paulo: Summus, 1998.
ARIÈS, P. História da morte no ocidente (1975). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, 290 p.

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