Coluna
Tecendo histórias sobre o Luto
Por Marina C Smith
Uma fábula de infância
Eles habitavam nossos jardins e só revelavam a sua existência para as crianças. Assim que estas cresciam, no entanto, esse encontro se esvanecia e a memória tratava de relegá-lo ao lugar das fábulas. “Só as crianças são capazes de enxergar os Leprechauns.” Essa era a premissa da história que meu pai nos contava na hora de dormir. Eram seres mágicos que protegiam a natureza e desconfiavam dos adultos que teimavam em derrubar árvores e poluir os rios, por isso estes eram incapazes de vê-los. As aventuras eram dignas de heróis, junto com as crianças, eles impediam que florestas fossem derrubadas, animais ameaçados, e ainda contavam com um sofisticado senso de humor quando pregavam peças nos adultos – talvez houvesse algum parentesco com os Sacis, hoje penso.
Certo dia nas férias, junto com meus primos, saímos numa secreta missão para encontrar os Leprechauns. Sonhávamos em partir nas expedições que salvariam a natureza. Não havia dúvida de que eles existiam, os adultos é que haviam se esquecido. Separamos alguns biscoitos recheados para presenteá-los, em nossas cabeças eles eram gulosos e iam gostar de experimentar essa iguaria – ainda não havia em nós a consciência dos “alimentos ultra processados” que certamente não agradariam seres tão naturais como esses gnomos, e não contávamos com os saborosos biscoitos de tapioca orgânicos que ainda nem sonhavam em existir no mercado.
Deixamos alguns biscoitos no jardim da casa como iscas e nos pusemos a observar a movimentação. O pobre do biscoito foi visitado pelas formigas, minhocas, passarinhos, mas nada de atrair os Leprechauns. Seria mesmo uma fábula? Alguns de nós já estavam desistindo da empreitada, crentes de que foram ingênuos ao darem asas à imaginação, outros persistiam porque precisam daquela sensação de que no mundo haveria ainda lugar para a mágica. Resolvemos mudar de estratégia, talvez fossem os Leprechauns de nosso jardim seres tímidos e desconfiados, então saímos da tocaia e voltaríamos mais tarde para checar os biscoitos.
Fomos brincar de cabana, construímos nossa base para missões complexas de salvar o mundo, inventamos uma música que seria nosso grito de aventura enquanto estávamos perdidos na selva com bichos ferozes a nos espreitar, a comida era escassa e a água estava acabando. Precisávamos encontrar um rio e achar um povoado perdido. Talvez um tesouro nos aguardasse? Com certeza havia muitos perigos e alguns de nós precisaram ser resgatados de árvores espinhosas e precipícios desoladores. O tempo passava e nossa missão ganhava novas matizes, mudamos de figurino imaginário, agora vestíamos roupas medievais, havia um castelo a ser explorado com inimigos armados, pessoas inocentes em perigo, novas ferramentas e apetrechos iam surgindo conforme a nossa necessidade imaginativa ordenava.
Esquecemos dos biscoitos. Não voltamos para checar se estavam lá, talvez porque sentíssemos que a mágica dos Leprechauns estivesse em nossa companhia o tempo todo enquanto mergulhávamos na criação de tantos mundos possíveis. Quando paramos de criar e nos conformamos só com esse? Talvez seja esse o esquecimento de que se trata, quando a mágica da infância deixa o mundo? Quem sabe realmente salvamos o mundo e contamos com as crianças para nos salvar novamente?