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Uma despedida para Lica

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Por Marina C Smith

Uma despedida para Lica

Eu devo isso a ela. Fui covarde e me esgueirei de fininho em nosso adeus na ilusão de que sem olhar para trás, a dor da separação iria embora mais rápido.

Lembro-me quando ela chegou em casa, filhotinha, Vira Lata de uma grande ninhada de outras Vira Latinhas. Meu irmão abriu o portão aos pulos anunciando a chegada de nossa nova cachorrinha. Nossa outra filhotinha não sobrevivera, fora tirada muito cedo de sua mãe e logo ficara muito fraca. Todos os nossos esforços foram vãos em salvá-la. Ficara poucas semanas conosco, só me lembro da pena que eu sentia vendo sua imensa fragilidade. Foi sobre esse manto do luto do primeiro bichinho de estimação que a Lica chegou. Eu tinha 11 anos e lembro-me da sua primeira noite conosco em que passei ouvindo seu chorinho no quintal. Naquela época- ou talvez fosse um costume da minha família- cachorro morava no quintal. Ela acostumou-se, os choros duraram pouco e logo reinava soberana em seu domínio. Travava batalhas de latidos com o Doberman mal-encarado da vizinha, sempre achei que no fundo havia uma história de paixão mal resolvida ali. Eles nunca se viam, havia um muro alto entre nossas casas, mas passavam o dia se provocando. Lica pulava alto, tentando alcançar o final da parede que os separava, e eu temia que um dia seu impulso fosse exitoso porque aquele Doberman não estava para brincadeiras. Johnny era seu nome, mostrava seus dentes afiados quando rosnava para nós assim que ousávamos dar uma espiada em seu quintal. Lá ele também era soberano.

Lica também tinha uma relação nada amistosa com os muitos gatos que andavam pelos telhados do bairro, alguns eram dessa mesma vizinha e não temiam o Johnny, o que me fazia pensar que talvez ele não fosse tão terrível como imaginávamos. Com os gatos não havia um muro que os impedissem de invadir o quintal da Lica e isso ela não perdoava, era mais valente que seu rival (ou amante platônico?) de muro. Eu tinha certa antipatia pelos gatos da vizinha, eles haviam caçados meus hamsters, aproveitando-se de uma fresta no vitrô da cozinha. Só sobrara um para contar a trágica história daquela noite porque soubera se esconder. Lica me vingava a cada vez que punha aqueles bichanos para correr.

Naquela época não havia tantos pet shops como agora, levávamos ao veterinário para as vacinas e dávamos o banho em casa mesmo, no tanque. A bichinha não gostava muito, e eu a entendo perfeitamente quando vejo os cachorros de hoje todos cheirosos e lustrosos, sendo paparicados nos pet shops com seus laços no pescoço. Pensando bem, ela odiaria laços no pescoço.

Uma vez ela fugiu, em uma bobeada do portão aberto. Ela não tinha o hábito de ficar na frente da casa, seu reino era nos fundos, mas de vez em quando era necessário deixá-la ali, e Lica gostava de olhar o movimento da rua, era incansável na arte de latir para qualquer forma viva que se mexesse. Quando não ouvimos seu latido, desconfiamos que algo estava errado. E estava. O portão aberto e nada dela. Saímos pelo bairro, meu irmão de perna engessada, perguntando para todos se tinham visto uma cachorrinha pretinha, meia Beagle, meia Pastor Alemão. E muitos tinham visto a danada, porque ela saíra deslumbrada com a liberdade, alegre e faceira, fazendo festa para todos os passantes. Seguimos as pistas e achamos a baladeira na rua de baixo, fuçando um canteiro de plantas. Ao nos ver, abaixou-se e veio abanando o rabinho, alegre em nos encontrar e temendo levar uma bronca – mas não seria o caso, como reprimir aquele legítimo impulso de ganhar o mundo?

A vida, no entanto, trouxe uma mudança de rota e Lica não poderia mais nos acompanhar. Procuramos um novo lar para ela no qual teria espaço para construir seu novo reino e encontrar novos amores. Mas como dizer isso a ela? Havia um sentimento em mim de traição permanente, principalmente quando, naquele dia, ela se mostrava tão alegre com o passeio de carro. Não era um passeio, era um adeus. Refugiei-me nos racionais argumentos de que seria melhor para ela, e me distanciei do afeto tentando ser o mais prática possível.

Minha mãe estacionou, entramos com Lica na casa de minha avó onde a pessoa que ficaria com ela nos esperava, morava em um sítio. Lica ficou siderada, correndo no jardim, subindo as escadas, pulando e abanando seu rabinho para quem cruzasse com ela. E foi nessa hora que eu escapuli, aproveitando o portão aberto, mas não era para ganhar o mundo, como ela fez com muito mais dignidade, era para fugir o mais rápido possível para não dar tempo da lágrima escorrer. Por um tempo contive essa dor, ela estava bem, pensava. Mas a lágrima que não escorreu deixou um rastro amargo dentro de mim e virou gastura quando soube, anos depois, que ela havia fugido de sua nova casa, provavelmente encontrara outro portão aberto. Em minha cabeça ela fugira para nos procurar, nunca vou saber.

Ainda hoje, vejo a Lica nos Vira Latas que cruzo na rua, as orelhinhas caídas da sua metade Beagle, aquela mistura de preto com o marrom claro da metade Pastor Alemão, a simpatia nos olhos e o inconfundível rabo alegre. A despedida eu deixo nessas linhas, como tributo a essa companheira de latidos incansáveis, que adorava brincar de rolar pelo seu quintal, e que sempre terá seu reino soberano dentro de mim.

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