Coluna
Tecendo histórias sobre o Luto
Por Marina C Smith
A Menininha, a Matrioska e a Trança
Ao final do disco da Arca de Noé, havia uma música que eu não entendia bem por que fazia parte daquele repertório, já que não falava de nenhum bicho em suas estrofes. Tudo bem que havia uma outra música sobre um relógio e outra ainda, sobre uma aula de piano, também enigmáticas para mim. Mas aquela música era diferente, ela encerrava o álbum e trazia uma tonalidade afetiva diferentes das outras. E isso eu percebia nos olhos marejados de minha mãe. Toda vez que tocava “Menininha”, algo mudava em seu semblante. A voz era do Toquinho, “Menininha do meu coração/ Eu só quero você/ A três palmos do chão”, mas era a voz de minha mãe que ressoava naqueles versos, “Menininha não cresça mais não/ Fique pequenininha na minha canção”. Eu era a menininha, e percebia que havia algo de nós duas naquela canção. Hoje penso que também há algo de outras tantas menininhas e suas mães, e talvez da própria menininha que minha mãe fora um dia.
Uma vez, lembro-me de perguntar-lhe o que afinal dizia aquela música que a fazia chorar, e com muita ternura, ela me explicou que falava de uma separação do crescimento. No auge dos meus 4 anos, prometi a ela que nunca nos separaríamos, que isso seria impossível. Ela me recebeu em seus braços e acarinhou meus cabelos, provavelmente sabendo que era parte inevitável da vida, mas que nem por isso, doía menos.
Tínhamos uma boneca Matrioska, que como todas de sua natureza, trazia em seu ventre uma linhagem de mães e menininhas, e mesmo para esse artefato de madeira, é preciso separar as partes, em um parto encenado, para se brincar, a diferença é que na vida não é possível trazer de volta às entranhas, a filha que uma vez se pariu. Já dizia o poeta que a saudade é o revés de um parto, quer colocar para dentro algo que não se permite voltar.
Nessa época, eu amava ouvir a história da Rapunel, a menininha-moça aprisionada em uma torre por sua madrasta-bruxa, que não queria dividi-la com o mundo. Restava sua trança, esse cordão umbilical que as unia e ao mesmo tempo as aprisionava. Separar-se é perder uma parte de si para ganhar o mundo, deixar a menininha crescer é apostar que fora da torre há algo que valha a pena ser encontrado. Um luto necessário para essa relação tão visceral entre mãe e filha.
A música da “Menininha” tomava o caminho da torre, subia pelas tranças umbilicais e tornava-se melancólica e soturna: “Fique assim meu amor, sem crescer/Porque o mundo é ruim, é ruim e você/Vai sofrer de repente/Uma desilusão/ Porque a vida é somente/ Seu bicho-papão”. Não era assim que eu sentia o mundo e nem era como minha mãe o mostrava para mim, assim escapamos da armadilha de nos encerrarmos juntas na torre de Rapunzel, ou no ventre fechado de uma Matrioska, ainda bem.
E essa menininha teve outra menininha, que hoje pede linha para crescer, desatando os nós de nossa trança primordial. Um lado desta menininha-agora-mãe, sente o peito apertado e entende os olhos marejados da mãe da menininha de outrora. É tentador desejar parar o tempo para eternizar uma ligação tão entranhada em nosso corpo de Matrioska. Mas outro lado sabe que parar o tempo é uma ilusão de morte, dentro do ventre a vida é somente espera, é fora que ela germina.