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A Avó Torta

By 20 de setembro de 2021setembro 21st, 2021COLUNA

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Por Marina C Smith

A Avó Torta

Ela tinha os cabelos macios e brancos, era pequenina e redondinha. Dona de um colo único, um ancoradouro para nossas angústias infantis. Não teve filhos, mas era a melhor avó que eu tinha.

Difícil explicar o lugar que ela ocupava na família, “é sua avó torta”, diziam meus pais. E fui derivando esse “torta” em vários sentidos ao longo da vida. Primeiro achava natural ter três avós, inclusive acreditava que todos tinham. Foi um choque ter a verdade revelada – em tom de segredo – por uma prima: ela não é nossa avó de verdade.  O “torta”, então, era uma arremedo de parentesco, um posto de vice avó? Vice ou titular, era minha avó, para mim era suficiente.

Era um poço de afeto, presença marcante na família. Lembro-me de suas mãos sempre com as unhas impecáveis, mãos fortes. Tinha um jeito particular de preparar o sanduíche de queijo, amassando e esmagando o pão com as mãos, dizia que era assim que gostava quando criança e eu pedia sempre para que amassasse o meu, só gostava quando ela fazia.

Passávamos as férias juntos, ela e os sete netos, era severa com as nossas peraltices e ao mesmo tempo nos protegia feito uma leoa. Sentia que sempre podia contar com ela. Não deixava ninguém acordar tarde, irrompia no quarto batendo palmas, repetindo: “vamos acordar, macacada!”. Na época, queria afundar meu sono no travesseiro, hoje tenho saudades.

Foi ela quem me iniciou nos prazeres desenfreados das leituras dos romances policiais da Agatha Christie, vício que compartilhamos por muitos anos, trocando exemplares, sem direito à spoilers – palavra que nem existia naquela época. Tinha certeza de que era a sua neta predileta, talvez cada um nós tivéssemos a mesma certeza, cabia tanto amor dentro dela, que era impossível pensar em disputar qualquer canto do seu coração.

Todo final de tarde das férias, ela aprontava sua mesa de jogo. Exímia costureira, fizera uma toalha de feltro verde para forrar a mesa da varanda e sobre ela espalhava suas cartas de baralho. Lembro-me do cheiro das cartas e da sua textura. Havia o baralho das crianças e o dela, esse último era um tesouro só liberado em sua presença e com certa maturidade alcançada por nós, não podia correr o risco de as cartas vincarem. Era incansável, ensinara todos os netos a jogar e disputava tranca com si mesma se não houvesse parceiros dignos de um bom jogo. Eu gostava de crapô e nunca consegui vencê-la, porque ela não dava colher de chá pra neto. Ainda hoje consigo vê-la, sentada com suas cartas, seus óculos bifocais e seu elegante penhoar, embaralhando as cartas da vida.

Um dia, um câncer a levou. Eu já era adulta, mas a menininha em mim sentiu o colo que se foi, aquele porto-seguro de afeto, que sempre pareceu perene, um dia mostrou sua dimensão humana e finita. Em sua generosidade, soube me oferecer um alento na despedida. Lembro-me de sentar-me ao seu lado na cama, e ela me falar que guardara sua boneca todos aqueles anos para mim. E havia me esquecido dessa história. Então, ela descreveu a conversa que tivera com uma menininha de cinco anos, sobre uma boneca muito especial que acompanhara sua infância, e essa menininha pedira essa boneca de presente. Prometera que a entregaria quando antes de partir, seria a sua herança. E numa caixinha de papelão, encontrei uma boneca com as marcas do tempo e do amor.

A “avó torta” sempre foi a “avó do amor”.  O coração tem vias que nem sempre são lineares, às vezes ele abre uma estrada oblíqua, torta, só para alcançar uma pessoa amada. E nessa imagem construí nossa relação. Nunca deixou de ser minha avó. E essa estrada torta mostrou ser tão bonita e tão genuína quanto as estradas retas. Até hoje quando penso na avó torta, sinto sua proteção vinda de algum lugar etéreo, não sou das pessoas mais religiosas, mas quando penso nela, acredito.

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