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Filme de Natal

Coluna

Tecendo histórias sobre o Luto

Foto: pixabay.com

Por Marina C Smith

Filme de Natal

Curioso como algumas lembranças nos assaltam. Essa irrompeu hoje, naquele estado matinal entre acordar de vez ou adormecer mais um pouquinho, naquele limbo de um colorido onírico que borra as fronteiras entre sonho e realidade. O sentimento também veio numa mescla, entre o conforto e a angústia nostálgica. Talvez pendendo mais para essa última, o que explica o fato de ter optado por acordar para puxar o ar e respirar fundo.

A lembrança? Na verdade, preciso confessar, não tenho certeza do quanto ela é minha em primeira mão ou foi resultado de muitos depósitos emprestados de outras pessoas ancorados em um filme Super 8 da década de 80. Tudo fica mais idílico e nostálgico estampado numa película de Super 8.

Nossa família estava morando em Boston por um ano em virtude das bolsas de pesquisas de meus pais cientistas. Minha Vó Torta (ver coluna anterior) nos acompanhou para ajudar no cuidado das crianças, meu irmão e eu, quatro e cinco anos, cruzando a linha do Equador.

Aquele seria nosso primeiro natal em um cenário de filme da Disney, com neve de verdade e um frio que brasileiro nenhum jamais se acostumará. Mas tudo era quentinho dentro de casa, e esse filme registra esse aconchego.

Meu pai se levantara antes de todos e ficara com sua Super 8 esperando que, um a um, todos acordassem naquela manhã de Natal. A Vó Torta logo aparece de penhoar, sorri com cumplicidade e diz qualquer coisa apontando os presentes que estão embaixo da árvore. Não há som nos filmes de antigamente, então deixamos nossa imaginação preencher o que a leitura labial não dá conta.

Meu irmão aparece em seguida com seu pijaminha mostrando aquela barriguinha redonda de criança que há pouco era bebê. Olha para os presentes e corre de volta para o quarto. O que será que aconteceu? A resposta vem logo em seguida, junto dele, coçando os olhos de sono, apareço bocejando. Era um momento a ser compartilhado e meu irmão não teve dúvida disso. Até aqui é meu relato de um filme, no qual me vejo em terceira pessoa. Sobreponho algum fio de memória dessa manhã, e o que vem mais forte talvez seja a sensação da expectativa, o cenário invernal e a música dos sinos cantantes que enfeitavam a árvore, acendendo a cada nota das canções de Natal. Nesse jogo de olhar-me de fora e depois mergulhar na primeira pessoa, essa lembrança foi ganhando lastro afetivo e construiu um edifício natalino dentro de mim. Todo ano revisito essa sala ou sou visitada por ela- como aconteceu nessa manhã.

Minha mãe aparece, não se dá conta de que meu pai a filmava e fica brava ao perceber que foi eternizada com o rosto amassado de sono, esfrega os olhos, linda, mas adiantava dizer isso? Há um corte no filme e ela aparece recomposta, sentada no chão conosco, ao lado dos presentes já abertos. Alguém pega a câmara, porque meu pai aparece de calção e sem camisa – e a neve lá fora.

Eu me lembro do meu presente.  Lembro-me de quando o desejei, de quando eu contei para minha mãe, no banho, que era uma máquina de costura que cerzia barbantes em placas de isopor com desenhos. Parecia fantástica na propaganda, “So Easy” era seu nome. E lá estava ela! Sabia que não fora obra do Papai Noel porque já me dera conta de que ele não existia, minha mãe nunca fora muito convincente, talvez porque ela mesma nunca fora uma entusiasta do bom velhinho importado do Polo Norte em pleno verão tropical. Mas dessa vez, talvez a única vez em minha infância, ele comporia o cenário sem parecer deslocado. Mas já era tarde para mim, na verdade, um lado meu se achava muito esperto por ter desvendado esse mistério e não acredito que me fez muita falta sonhar como ele. Já meu pequeno irmão, graças à intervenção da minha avó, mantinha a crença, e ficou muito entusiasmado com o posto de gasolina cheio de apitos que Papai Noel trouxera para ele. Confesso, que depois de um tempo, até eu preferia o posto à máquina “So Easy”, que era linda, mas não era tudo aquilo que a propaganda dizia.

Esse é o recorte, uma manhã ao pé da árvore de Natal, com seus sinos vermelhos melódicos, todos de pijamas abrindo presentes, com a neve na janela e uma Super 8 na mão. Por que essa lembrança me falta o ar quando me invade sono? Faz mais de quarenta anos e mesmo assim volta tão vívida. Ao mesmo tempo, contudo, tem tanta vida entre a menina da máquina de costura e a mulher de hoje, que a falta de ar talvez seja a expressão do susto de se dar conta de que o tempo realmente passou.

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